quarta-feira, 20 de março de 2013


HOMILIA A SÃO JOSÉ ADORMECIDO

Queridos irmãs e irmãos:

Há pouco tempo vi em casa de uns amigos uma representação
de São José que me fez pensar muito. É um alto-relevo 
proveniente de um retábulo português da época barroca, 
em que se mostra a noite da fuga para o Egito. Vê-se uma 
tenda aberta, e, perto dela, um anjo de pé. Dentro da tenda,
José está a dormir, mas vestido com a indumentária 
própria de um peregrino, calçado com botas altas, necessárias 
para uma caminhada difícil. Se na primeira impressão parece
um pouco ingênuo que o viajante apareça também como 
adormecido, pensando melhor começamos a perceber o que 
a imagem nos quer sugerir.

alto-relevo do barroco português: 'São José de Botas'

José dorme, é verdade, mas está simultaneamente disposto
a ouvir a voz do anjo (Mt 2,13ss). Parece depreender-se da 
cena o que o Cântico dos Cânticos tinha proclamado: eu 
dormia, mas o meu coração estava vigilante (Cânt 5,2). 
Os sentidos exteriores repousam, mas o fundo da alma pode 
ser tocado. Nessa tenda aberta temos a representação do 
homem que, desde o mais profundo do seu ser, pode ouvir o 
que vibra no seu interior ou lhe é dito desde as alturas, do 
homem cujo coração está suficientemente aberto para 
receber aquilo que o Deus vivo e o seu anjo lhe querem 
comunicar. Nessa profundidade, a alma de qualquer 
homem pode encontrar-se com Deus. Nessa profundidade, 
Deus fala a cada um de nós e mostra-nos como está próximo.

Contudo, na maior parte das vezes encontramo-nos 
invadidos por cuidados, inquietações, expectativas e desejos 
de toda a espécie, tão repletos de imagens e carências 
produzidas pela vida de cada dia, que, por muito que 
vigiemos exteriormente, é-nos pedida a vigilância interior e, 
com ela, o som das vozes que nos falam desde o mais íntimo 
da alma. Esta está tão sobrecarregada e são tantas as muralhas 
erguidas no seu interior, que a voz suave do Deus 
próximo não consegue fazer-se ouvir. Com a chegada da Idade 
Moderna, os homens têm vindo a dominar cada vez mais o 
mundo e a dispor das coisas à medida dos seus desejos; 
mas estes avanços no nosso domínio sobre as coisas, e no 
conhecimento do que com elas podemos fazer, limitaram, por 
outro lado, a nossa sensibilidade, de tal maneira que o nosso 
universo se tornou unidimensional. Estamos dominados 
pelas nossas coisas, por todos os objetos que as nossas mãos 
alcançam, e que servem de instrumentos para produzir outros 
objetos. No fundo, não vemos outra coisa senão a nossa 
própria imagem, e estamos incapacitados para ouvir a voz 
profunda que, desde a Criação, nos fala também hoje da 
bondade e da beleza de Deus.

Esse José que dorme, mas que ao mesmo tempo está preparado 
para ouvir o que ecoe no seu íntimo e desde o alto – porque não 
é outra coisa o que o Evangelho deste dia acaba de nos dizer 
é o homem em que se unem o recolhimento íntimo e a prontidão. 
A partir da tenda aberta da sua vida, convida a retirarmo-nos um 
pouco do bulício dos sentidos; para que recuperemos também 
nós o recolhimento; para que saibamos dirigir o olhar para o 
interior e para o alto, para que Deus possa tocar a nossa 
alma e comunicar-lhe a sua palavra. A Quaresma é um 
tempo especialmente adequado para nos afastarmos das 
vicissitudes quotidianas, e dirigirmos novamente os nossos 
passos pelos caminhos do interior.

Passamos ao segundo ponto. Esse José que vemos pronto 
para se levantar e, como diz o Evangelho, cumprir a vontade 
de Deus (Mt 1,24; 2,14). Assim toma contato com o núcleo 
da vida de Maria, a resposta que ela ia dar no momento decisivo 
da sua existência: Eis aqui a serva do Senhor (Lc 1,38). São José 
reage assim: Aqui tens o teu servo! Dispõe de mim! A sua 
resposta coincide com a de Isaías no momento de 
receber o chamamento: Eis-me aqui, Senhor. Envia-me 
(Is 6,8, juntamente com 1 Sam 3,8ss). Esse chamamento
preencherá toda a sua vida daqui em diante. Mas também há 
outro texto da Escritura que vem a propósito: o anúncio que 
Jesus faz a Pedro quando lhe diz: Levar-te-ão onde tu não 
queiras ir (Jo 21,10). José, com a sua celeridade, tomou-o 
como regra da sua vida: porque está preparado para se deixar 
conduzir, embora a direção não seja a que ele quer. Toda a 
sua vida é uma história desta correspondência.

Começou com a mensagem do anjo sobre o segredo da 
maternidade divina de Maria, o mistério da vinda do 
Messias. De repente, a ideia que tinha feito de uma vida 
discreta, simples e agradável, fica transtornada quando 
se sente associado à aventura de Deus entre os homens. 
Tal como sucedera no caso de Moisés perante a 
sarça-ardente, encontrou-se face a face com um mistério 
em que lhe cabe ser testemunha e co-participante. Muito 
brevemente saberá o que isso implica: que o nascimento do 
Messias não pode acontecer em Nazaré. Tem de partir para 
Belém, que é a cidade de David; porém, também não 
acontecerá aí: porque os seus não o receberam (Jo 1,11). 
Já aponta para a hora da Cruz: porque o Senhor terá de 
nascer fora de portas, num estábulo. Logo depois, 
chega a nova mensagem do anjo, a saída do Egito, onde 
irá sofrer a sorte dos que não têm casa nem pátria: 
refugiados, estrangeiros, desenraizados que procuram um 
lugar para se instalar com os seus.

Irá regressar, mas sem terem terminado os perigos. Mais 
tarde vai sofrer a dolorosa experiência dos três dias durante 
os quais Jesus está perdido (Lc 2,46), esses três dias que são 
como um presságio dos que mediarão entre a Cruz e a 
Ressurreição: dias em que o Senhor desapareceu e se sente o 
seu vazio. E, do mesmo modo que o Ressuscitado, não irá 
regressar para viver entre os seus com a familiaridade daqueles 
dias que terminaram. Pelo contrário, diz: Não me detenhas, 
pois ainda não subi para o Pai, e poderás estar comigo 
quando subires também (cf. Jo 20,17). Assim, agora, 
quando Jesus é encontrado no Templo, reaparece em primeiro 
plano o mistério de Jesus naquilo que ele tem de distanciamento, 
de ponderação e de grandeza. José sente-se, de certo modo, 
posto no seu lugar por Jesus, mas ao mesmo tempo encaminhado 
para o alto. Eu devia ocupar-me das coisas de meu Pai (Lc 2,19). 
É como se lhe dissesse: Tu não és meu pai, mas guardião que, 
ao ser-te confiada esta missão, recebeste o encargo de 
proteger o mistério da Encarnação.

E, finalmente, José morrerá sem ter visto manifestar-se a 
missão de Jesus. No seu silêncio ficarão sepultados todos 
os seus padecimentos e esperanças. A vida deste homem não 
foi como a daquele que, pretendendo a realização de si próprio, 
procura somente em si os recursos de que necessita para 
fazer da sua vida o que quer. Foi o homem que se nega a si 
mesmo, que se deixa levar para onde não queria ir. Não fez da 
sua vida coisa própria, mas algo para entregar. Não se deixou 
guiar por um plano que o seu intelecto tivesse concebido, 
e a sua vontade decidido, mas, respondendo aos desejos 
de Deus, renunciou à sua vontade para se entregar à de 
Outro, à vontade grandiosa do Altíssimo. E é exatamente 
nesta renúncia total a si próprio que o homem se descobre.

Porque a verdade é assim: somente se soubermos perder-nos, 
se nos dermos, podemos encontrar-nos. Quando isto sucede, 
não é a nossa vontade que prevalece, mas a do Pai à qual 
Jesus se submeteu: não se faça a minha vontade, mas a 
tua (Lc 22,42). E, tal como então, cumpre-se o que 
dizemos no Pai-Nosso: Seja feita a tua Vontade assim na 
terra como no Céu. Por isso S. José, com a sua renúncia, 
com o seu abandono, que de certo modo adiantava a imitação
de Jesus crucificado, nos ensina os caminhos da 
fidelidade, da ressurreição e da vida.

Falta-nos um terceiro aspeto: olhando para este José, que 
está vestido como peregrino, compreendemos que, a partir do
momento do Mistério, a sua existência seria a de quem está 
sempre a caminho, num constante peregrinar. A sua vida foi 
assim uma vida marcada pelo sinal de Abraão: porque a História 
de Deus entre os homens, que é a história dos seus eleitos, 
começa com a ordem que o pai desta estirpe recebeu: 
Sai da tua terra para seres um estrangeiro (Gen 12,1; 
Heb 9,8ss). E por ter sido uma réplica da vida de Abraão, José 
aparece-nos como uma antevisão da existência do cristão. 
Podemos comprová-lo com particular vivacidade na primeira 
Carta de S. Pedro e na de Paulo aos Hebreus. 
Como cristãos que somos – dizem-nos os Apóstolos – 
devemos considerar-nos estrangeiros, peregrinos e 
hóspedes (1 Ped 1,17; 2,11; Heb 13,14): porque a nossa 
morada, ou como diz S. Paulo na sua Carta aos Filipenses,
a nossa cidadania está nos Céus (Fil 3,20).

Outras pinturas sobre o mesmo tema: 'o sonho de José'

Hoje em dia, estas palavras sobre o Céu soam mal: porque 
tendemos a acreditar que afastar-nos de cumprir as nossas 
obrigações na terra nos aliena do nosso mundo. Tendemos a 
acreditar que a nossa vocação é somente fazer da Terra 
um Paraíso. Porém, acontece que na realidade, ao 
comportar-nos desse modo, o que estamos a fazer é 
precisamente destruir a Criação. Porque, no fundo, os anseios 
do homem apontam na direção do infinito. Daí que, hoje 
mais do que nunca, nos demos conta que unicamente 
Deus consegue saciar o homem por completo. Estamos 
feitos de tal forma, que as coisas finitas nos deixam sempre 
insatisfeitos, porque precisamos de muito mais: necessitamos 
do Amor inesgotável, da Verdade e da Beleza ilimitadas.

Embora esse anseio seja irreprimível, podemos retirá-lo 
dos nossos horizontes e procurarmos o infinito naquilo que 
não no-lo pode dar. Querendo ter o Céu já na terra, 
esperamos e exigimos tudo dela e da atual sociedade. 
Porém, na sua intenção de extrair do finito o infinito, 
o homem espezinha a terra e impossibilita uma ordenada 
convivência social com os outros, porque os vê como 
ameaça ou obstáculo. Somente quando aprendermos 
novamente a dirigir o nosso olhar para o Céu, brilhará 
também a terra em todo o seu esplendor. Só quando 
dermos vida às grandes esperanças dos nossos ânimos com 
a ideia de um eterno estar com Deus, e nos sentirmos 
novamente peregrinos a caminho da Eternidade, em 
vez de nos apegarmos a esta terra, só então os nossos
anseios irradiarão para este mundo para que tenha 
também ele esperança e paz.

Por tudo isto, demos graças a Deus neste dia porque nos 
deu esse Santo, que nos fala de recolhimento com Ele; que nos
ensina a prontidão e a obediência e a atitude dos caminhantes 
que se deixam dirigir por Deus; e que, por isso mesmo, 
nos diz a maneira de servir igualmente a nossa terra. 
Imploremos a graça para que, mostrando também nós 
vigilância e prontidão, sejamos um dia recebidos por Deus, 
que é o nosso autêntico destino de caminhantes.


(Homilia do então Cardeal Joseph Ratzinger, Roma, 19/03/1992)

Fonte: sendarium.com

Um comentário:

Ant disse...

São José,

Querido Amigo reza por nós!

Abração

António

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